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A aliança

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  Ele entrou na loja e procurou alguém que o ajudasse encontrar os doces para o aniversário de sua avó. Ela faria 90 anos, estava lúcida e feliz pela companhia dos netos e filhos que viriam de longe. Lembrou-se de quando ela o levou àquela loja pela primeira vez, os doces fascinavam-no de tal forma que tudo queria adquirir. Longos anos, talvez 20 anos atrás, quando ela, a avó, estava mais lúcida e serelepe, enquanto ele, um pequeno adolescente, lutava com espinhas e desejos por meninas da escola. Foi longe o pensamento... sorriu de pensar. E procurou com os olhos alguém que o ajudasse com os doces. Logo avistou Julia que o reconheceu e abriu um largo sorriso de satisfação. A mesma Julia de anos atrás, agora com os cabelos grisalhos e o andar mais lento. Ele retribuiu a recepção e logo se aquietou novamente: não gostava muito de demonstrações públicas de afeto. Ele, que tanto gostava de abraçar na infância e adolescência, agora procurava se conter e discretamente se mostrar. Era mel...

Um dia, Marina

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Eu pensei que já tinha passado, mas ainda me lembro! Na chuva, enquanto me despedia, sorria. Você em silêncio, olhos baixos. Eu chorava, uma emoção fina, contida. Você não se mexia. Ali, percebi a distância. O seu medo. E fingi não notar. Sofri. Calado. Entrei no aeroporto, voltei. Você ficou. Alguns anos se passaram. Você em silêncio. Eu procurando entender. Agora é tarde. Seu sofrimento existe. O meu? Passou! Morreu! Eu morri pra você! Tenho alegria em saber que sofre. Prazer em saber que agora chora. Júbilo por sua dor. Real. Calada. Um dia, Marina. Um dia… Um dia isso passa!

Feliz Aniversário

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Sei que logo será seu aniversário, mas não conseguirei falar. Não, eu não quero. Não quero falar com você ou saber de você. Eu resolvi ser egoísta agora, pois sinto que não conheci ainda alguém que consiga expressar tão bem o egoísmo como você. Não é ódio que eu sinto, ou rancor, ou pena. Mas é algo que sinto. Talvez você tenha personalizado todo meu egoísmo, projetado, escarrado, solto. Toda minha maldade, direcionada a mim e ao que eu mesmo não gostava em mim. E eu entendi isso e superei. Sei que a dor tem lhe feito companhia, e celebro isso. Sei que sente falta do que achávamos que tínhamos, mas eu não. Lembro-me do que falávamos e do quanto prometemos e não cumprimos... aliás, você não cumpriu. Você me disse palavras vazias e me fez acreditar que seria possível ter um novo começo. Você conseguiu tirar de mim o meu pior, acho que deveria agradecer por isso. Eu enxerguei o meu pior, transmutado em seus olhos claros como se fossem promessas de liberdade. Eu enxerguei minha mentira, mi...

De profundis

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  Era fiel o pobre tolo, mesmo sozinho na prisão, onde seu amante nunca esteve. E clamava por Cristo, em um devaneio de fé, como se ali pudesse redimir-se do pecado de amar... e era esse seu único delito, pobre tolo, amar sem mácula aquele que um dia o condenou. Profundamente só e reflexivo, encontrava-se consigo mesmo e com as imagens de um inconsciente que abundava em sua consciência, deixando-o em um estado febril e delirante. Não mais o mundo ou a vida aos seus pés, apenas aquelas paredes frias de onde encontraria a própria liberdade: a condenação de ser livre, pois tornava-se quem era e quem deveria ser. Talvez os anos custassem sua juventude, mas não sua mente brilhante que saía pelos poros como vida em abundância. Tornava-se seu próprio Cristo, sem seu amante, sem a lasciva aproximação daqueles que estão presos na falsa liberdade de pertencer ao mundo. Era fiel o pobre tolo, a si mesmo. Não ao amante. Não ao afeto vil que o levaria à loucura, mas ao que se tornava em si mesm...

Um dia, Francisco

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Eu celebro o tempo que tive e a vida que tenho. Eu celebro o que sou e me torno. Eu celebro a mim.  A angústia passou, assim como o leite amargo que já não faz mais sentido… ele também passou, como todos os outros que nada ofereciam.  Eu celebro o tempo que sou, a queda que tenho e a vida que surge… as cores que ficam vívidas e os olhos cansados que precisam de lentes para ver. E agora, as lentes são minhas. Os meus (familiares) passaram, como disse Belchior, estão em casa (deles). Como diz a canção,  os meus cabelos um dia estiveram ao vento, e agora ele está no meu imaginário… o imaginário. Uma realidade interna, daquelas que são construídas pelo inconsciente, onde habitam os demônios de meu inferno. E os anjos do meu céu. E o Adão, negro, que com Eva prova do fruto proibido… da maçã que era banana, que era serpente, que era Satã e também era D’us na minha fábula de senix. Eu celebro o tempo… de quando eu ainda era capaz de amar Marina, ou Bruno, ou qualquer outro que m...

A mediocridade não vivida

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Hoje eu me levantei triste, profundamente triste. Ubatuba me saúda com uma paisagem linda pela janela, vejo o mar que é fascinante. E ainda assim estou triste, melancólico e solitário.  Sinto-me deslocado por gostar do que poucos gostam e estar com pessoas que me cobram para enturmar em seus barulhos, suas bebidas e pela busca desenfreada por prazer sexual. Sinto-me deslocado por não conseguir, ainda que às vezes, ser superficial.  Eu quero falar sobre espiritualidade, sobre filosofia e debates profundos sobre a existência... mas não é possível. Então, sozinho, observando o mar, questiono uma vez mais sobre a vida não vivida... sobre a vida que poderia ter sido com as companhias, as bebidas e a mediocridade que permeia a todos. Não, não é fácil ser diferente. Eu queria só por um momento gostar da mediocridade, do absurdo da mediocridade, do riso fácil e da alegria idiota que está em todos que se deleitam com músicas de funk e bebidas que se repetem... eu juro que queria, só po...

E isso, enfim, irá bastar... Marina

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  Há dias me lembro de você, Marina. Vejo suas fotos antigas e seus olhos nunca brilhavam ao meu lado… mas eu aprendi que recebemos do mundo e das pessoas o reflexo de nossas expectativas internas: e você nada mais me entregou senão o que eu esperava de você. Do que você tinha para entregar. Do que eu acreditava que poderia vir de você. É estranho me lembrar e ainda sentir. É estranho ainda ter emoção. É estranho desejá-la e amá-la e, ao mesmo tempo, desdenhá-la e odiá-la com toda profundidade possível. Sim, eu sei, sou contraditório porque estou machucado. E procurei você em outras pessoas, sem encontrá-la. E continuei a sofrer, calado e no choro solitário da noite, pela rejeição que vivi por me entregar demais. As palavras não são o suficiente, Marina... espero que a dor que senti ainda seja para você uma boa e perene companhia. E isso, enfim, irá bastar.